sábado, 31 de janeiro de 2015

Lúpulo

Dando continuidade à série de posts acerca dos ingredientes principais da cerveja, apresento hoje o resultado de minha mais recente pesquisa, a qual trata do ilustre lúpulo, esse pequeno cone verde, apreciado, ou melhor, adorado por tantos, e que com certeza desperta a curiosidade de muitos. Acabou que tive que me forçar a publicar o post, uma vez que a pesquisa estava levando a um artigo imenso, aprofundado em todos os sentidos, e que acabaria por se mostrar uma leitura excessivamente chata (eu mesmo estava achando isso!). Segue, então, uma versão compacta; os pontos que ficaram de fora, ou que receberam apenas uma pequena explicação serão tema de posts próprios num futuro não muito distante!

Bem, vamos lá: o lúpulo é o ingrediente da cerveja que fornece sua espinha dorsal em termos de amargor, aumenta sua estabilidade micro-biológica, ajuda a estabilizar sua espuma, e influencia muito o seu sabor e aroma. Uma cerveja feita sem lúpulo não passa de suco de cevada, sem caráter; o lúpulo é a assinatura, e peça fundamental em grande parte dos estilos atualmente consumidos mundo afora.

Like salt, pepper and spices in food, the flavour benefits that hops bring to beer are almost immeasurable. And just as the winemaker has hundreds of grape varieties to choose from, the brewer has na equally wide choice of hop varieties, some delicately floral, some blackcurranty or earthy, others bursting with vibrant grapefruity zing. Melissa Cole, LET ME TELL YOU ABOUT BEER



O tal do lúpulo


Antes de qualquer coisa, é importante que se saiba que, quando do casamento cerveja/lúpulo, faz-se necessária uma classificação fundamental entre as espécies utilizadas: lúpulos aromáticos e lúpulos de amargor. Há ainda aqueles lúpulos que se dão bem em ambas as categorias, ou seja, lúpulos “dual purpose”. Os chamados lúpulos de amargor são aqueles com alto teor de alfa ácidos, superiores a 9% em peso, capazes de dar não apenas um toque, mas uma porrada de amargor à cerveja. Lúpulos aromáticos possuem teor menor, em média 7%, provendo um aroma mais complexo e amargor leve.

A adição de lúpulo, em termos aromáticos e de amargor depende do estilo da cerveja, bem como do tato do mestre cervejeiro. Muitas lagers de massa, por exemplo, levam tão pouco lúpulo que são capazes de fazer o consumidor mais atento pensar que o mestre cervejeiro esqueceu de adicionar o ingrediente. No outro extremo, é cada vez mais comum que pequenas cervejarias tentem, com todas as forças, levar o amargor de suas cervejas ao limite da tolerância gustativa do ser humano, por vezes deixando todo e qualquer equilíbrio de lado. É verdade que as cervejas altamente lupuladas estão virando moda e caindo no gosto de muitos novos apreciadores de cerveja, basta ver a quantidade de artigos comerciais sendo vendidos com frases do tipo Hopaholic, hopfreak etc., mas esse tipo de cerveja definitivamente não agrada a todos os paladares.

As variantes aromáticas levam boa vantagem sobre as variantes destinadas ao amargor em termos comerciais e qualitativos, dado seu espectro muito mais amplo em termos de aromas, e as possibilidades que essa variedade proporciona aos mestres cervejeiros. Quando da produção da cerveja, esses lúpulos, além de cumprirem seu papel fundamental de aromatizar a bebida, também são utilizados para conferir mais corpo à cerveja. Entretanto, como o amargor não deve ser deixado de lado, e dado o poder muito inferior de conferir amargor por parte dessas variantes, faz-se necessária uma quantidade consideravelmente maior de lúpulo para que se atinja o amargor desejado, quando da utilização de apenas essas variantes de lúpulo; ou, como normalmente acontece, esse problema pode ser contornado pela adição de variantes de amargor juntamente com variantes aromáticas. As variantes aromáticas mais nobres, dentre as atualmente cultivadas, são os noble hops Hallertauer Mittelfrüh, Spalt, Tettnanger, Saaz e a variante Hersbrucker Spät. Em Tettnang e Hallertau, na Alemanha, desde 2006 também são cultivadas novas variantes, chamadas de Special Flavor Hops, as quais incluem “mandarina Bavaria”, “Hüll Melon”, “Polaris” e “Hallertau Blanc”.

Noble hops

Lúpulos nobres, ou “noble hops” é um termo histórico e comercial, atribuído a quatro variedades de lúpulo distintas que foram domesticadas em suas respectivas áreas e se tornaram populações geneticamente isoladas nesse local. Os noble hops são o Hallertauer Mittelfrüh da região de Hallertau na Baviera; Tettnang, de Tettnang na Alemanha, perto do Lago Constança (Região Sul); Spalt da Baviera, ao sul de Nürnberg; e Saaz da região Zatec da República Checa. Esses lúpulos levam especial louvor em função de seus aromas e do amargor delicado. O ponto negativo em relação ao cultivo dessas variedades fica por conta de seu baixo rendimento, bem como da alta propensão a doenças.

Muitas variedades de lúpulo lançadas no século passado descendem em maior ou menor grau de uma dessas quatro variantes nobres.

From grassy to flowery and fruity to earthy, the flavours that come from these amazing green cones can push a good beer into transcendente greatness. This is done either through the subtle use of a single hop variety, or through the skilful blend of several. Melissa Cole, LET ME TELL YOU ABOUT BEER


História


Inicialmente, a adição de lúpulo se deu principalmente em função das boas qualidades de conservação oferecidas pelo ingrediente. Já em 1153 o poder de conservação do lúpulo era conhecido, sendo comentado por ninguém menos que Hildegard von Bingen (a pelo Papa denominada Doutora da Igreja Universal) dessa forma: „putredines prohibet in amaritudine sua“ (seu amargor inibe o apodrecimento).  A adição do lúpulo à bebida, portanto, tinha na conservação a sua principal razão de ser. Dessa forma, o lúpulo era adicionado diretamente ao barril contendo a cerveja “já pronta” (nos termos da época, quase um dry hopping). Inclusive, a (maravilhosa) IPA, deve muito à essa técnica. Essa cerveja, transportada pelos britânicos à Índia em intermináveis viagens de navio, levava quantidades imensas de lúpulo, com o único intuito de conservá-la nas semanas sobre o mar. Ao final da viagem, nada mais normal que um forte ainda que fresco sabor lupulado, perfeito para matar a sede das tropas em exercício no local.

Existem cerca de 300 componentes que impactam no aroma do lúpulo. Alguns desses componentes são agradáveis ao paladar humano, ao passo que outros, quando em excesso, podem estragar a cerveja. Contudo, como descrito adiante, o lúpulo não nasceu juntamente com o homem, de modo que até a sua descoberta, o homem cervejeiro teve de dar um jeito de incrementar ou modificar a sua bebida. Assim, ainda durante a Idade Média, os cervejeiros utilizavam literalmente de tudo para trabalharem as suas receitas. A utilização desse leque imenso de aditivos tinha como objetivos principais a conservação da bebida (naquela época a fermentação não era controlada, de forma que a mistura ficava exposta à uma infinidade de micro-organismos, os quais intensificavam em muito a sua atividade ao longo dos meses mais quentes do ano), trabalhar seu aroma e sabor, aumentar o seu teor alcoólico, ou intensificar seus efeitos inebriantes.
Adição de lúpulo

Gruit

Além disso, não era raro acrescentar outros ingredientes à cerveja com o intuito de encobrir aromas indesejáveis ou salvar um lote de cerveja que tivesse dado errado (vide o post sobre Porter) A lista de ingredientes e “coisas” adicionadas à cerveja naquele tempo (como já mencionado em outros posts desse blog) é interminável, mas entre os mais comuns, destacam-se o mel, a canela, o açúcar mascavo, o anis, o gengibre, a rúcula, o alecrim, o cravo e uma série de raízes e cogumelos. Mais tarde, por volta do século VIII, uma mistura mais ou menos padronizada passou a se estabelecer, diminuindo até certo ponto o uso desenfreado de ingredientes aleatórios. Essa mistura, denominada gruit  incluía várias ervas, como o próprio alecrim, artemísia, aquiléa, urze, gengibre, além de canela, anis, pétalas de margarida e cogumelos. A produção dessa mistura era controlada rigorosamente pelos governantes da época, os quais deviam conceder autorizações especiais afim de que determinado cidadão pudesse produzir e comercializar o gruit.

Gruit
Séculos mais tarde, com o início do uso do lúpulo, a facilidade e a economia representada pela necessidade de se adicionar apenas um, e não mais uma infinidade de ingredientes, aliado às questões econômicas e políticas, representaram o declínio do gruit, e a ascensão desse novo ingrediente que ora descrevo. Digo questões políticas e econômicas pois uma vez que grande parte do gruit da época era produzido em mosteiros, isentos do pagamento de impostos na Europa, esses locais de produção passaram a enriquecer rapidamente, tendo na produção do gruit mais uma fonte de recursos capaz de manter e até mesmo aumentar o seu poder frente à sociedade e ao governo da época, sem serem obrigado a entregar algo para o Estado. (A saber: a partir de 1774 a produção de lúpulo passou a estar vinculada a impostos próprios, e em 1774 passou-se a obrigar os produtores a colocarem o nome do local de produção nos sacos destinados a transportar o lúpulo para maior controle.)

Oasthouse em Kent, Inglaterra
Dessa forma, ainda que ainda existam inúmeras cervejas que levem ingredientes outros que os clássicos, e até mesmo países conhecidos justamente pelas belas combinações que alcançam em suas bebidas, a introdução do lúpulo na cerveja representou um ponto de mudança nessa história toda, e foi sim responsável pela eliminação gradual dos demais aditivos.

Do campo à panela

Esse lúpulo a que tanto devemos, ainda que fiel companheiro do homem por onde quer que esse vagasse no planeta Terra, demorou séculos para ser domesticado, e mais um bom tempo até que encontrasse o caminho para dentro da panela de fervura.

Acredita-se que o primeiro cultivo de lúpulo tenha acontecido em 736 d.C., em Geisenfeld (Hallertau), ainda que os primeiros registros datem de 768 d.C (Mosteiro de St Denis, Paris), 822 d.C. (Mosteiro de Corvey), e 859 à 875 d.C. (Freising). Ainda hoje, essa mesma (e ilustre!) Alemanha é a principal produtora de lúpulo no mundo, sendo responsável por nada menos que 25% da produção mundial (quem já teve o prazer de andar pelas estradas da Bavária sabe do que estou falando). Já o primeiro uso de lúpulo na produção de cerveja data de 822 d.C., quando o clérigo Adalhard do monastério beneditino de Corbie, no nordeste da França relatou que seus monges haviam feito uso da planta em sua cerveja. Outras fontes dizem que o primeiro uso aconteceu não muito longe dali, por volta da mesma época, no vilarejo de Haithabu, então Dinamarca e atualmente parte do estado de Schleswig-Holstein, da Alemanha. Na Alemanha, aliás, o primeiro registro data de 1079, sendo que o uso do lúpulo quando da produção cervejeira se intensificou na Idade Média nas cidades de Wollin, Breslau, Troppau, Brüx, Wismar, Braunschweig e Lübeck. 

Mas voltando à França, ocorreu que no século XI, o uso de lúpulo havia se popularizado de tal modo em todo o país, que mais tarde, em 1268, o rei Luís IX decretou que em seu reinado apenas malte e lúpulo poderiam ser utilizados na produção de cerveja. Atravessando o canal, a Grã-Bretanha por sua vez demorou mais alguns séculos para adotar o lúpulo, que por lá, nessa época, sofria da fama de "erva de menor qualidade, que apenas promove a melancolia (!)". Dessa forma, os reis Henry XI e Henry VII, ambos, baniram a utilização de lúpulo nas ales britânicas ao longo de seus reinados. Como justificativa para esse banimento, escreveram que o lúpulo não passava de um "afrodisíaco capaz de levar seus súditos a comportamentos pecaminosos".
Colheita de lúpulo em Hallertau, Alemanha

Voltando ao continente, os cervejeiros da época continuavam a ir exatamente na direção contrária, aperfeiçoando cada vez mais a utilização dessa ilustre planta em suas panelas. Tanto que em várias localidades, os mestres eram obrigados por lei a aromatizarem as suas cervejas com nada além de lúpulo, seguindo a linha da lei imposta por de Luís IX. Por volta do século XIV, o lúpulo havia criado um mercado de grandes dimensões, cujo centro era a cidade de Nürnberg (Sul da Alemanha), onde a planta era chamada de ouro verde, tendo se tornado uma commodity das mais importantes, e enriquecendo os produtores da região de forma acelerada. Dessa forma, dando continuidade à tendência da época, ainda que motivado por motivos outros (como já descrito em outros posts nesse mesmo blog, por exemplo nesse), o Duke Wilhelm IV, da Bavária, assinou a Lei de Pureza da Bavária, a qual estipulava o uso de apenas três ingredientes na produção cervejeira: água, malte de cevada e lúpulo.

Com as coisas da forma como estavam no continente europeu, e sendo o lúpulo unanimidade por lá, e já tendo desbancado o gruit, os ingleses passaram, igualmente, a sentir a pressão exercida por esse peculiar ingrediente, ficando a resistência cada vez mais difícil. Assim, e como não podia deixar de ser, a certa altura a pressão econômica passou a ser insuportável, uma vez que os cervejeiros britânicos já não podiam fazer frente ao continente. O lúpulo, finalmente, invadia também as ilhas.

O novo mundo

Já na América do Norte, apesar de existirem variantes nativas de lúpulo, os primeiros cervejeiros não fizeram uso dessas, preferindo importar lúpulo do velho mundo ou então cultivando suas variantes, já conhecidas, em solo americano, plantio esse que teve início em 1629, no estado de Washington. Apenas mais trade, por volta de 1800, quando o plantio de lúpulo já estava plenamente estabelecido no novo mundo, foi que teve início a hibridização das variantes europeias com as americanas, mistura essa da qual surgiram espécies atualmente muito comuns, como a Cluster. Essa variante, acredita-se, é um hibrido entre a variante English Cluster e uma variante de lúpulo selvagem nativa da América do Norte. 

Atualmente, nos Estados Unidos, as cervejas em sua maioria levam alguma das variedades pertencentes ao grupo dos quatro “Cs”: Centennial, Chinook, Colombus e Cascade. Esses lúpulos dão às cervejas americanas, em particular às IPAs e Pale Ales, seu conhecido aroma floral e seu amargor acentuado.

O vegetal


O lúpulo é a flor, ou "cone", do Humulus lupulus, que significa aproximadamente "um pequeno [do malfeitor] lobinho [planta]". O gênero Humulus pertence à família da Cannabaceae, a qual  inclui a Cannabis (cânhamo, marijuana) e a celtis (hackberry). O lúpulo é nativo do hemisfério Norte, nas zonas de temperatura da Europa, Ásia Ocidental e América do Norte, e acredita-se ter surgido na China. Atualmente, é cultivado em ambos os hemisférios, numa latitude entre 30 e 52 graus. 

Existem cinco variedades taxonômicas reconhecidas no gênero Humulus lupuluslupulus (Europa e Ásia Ocidental); cardifolius (Ásia Oriental, Japão); lupuloides (Oeste da América do Norte), neomexicanus (Leste da América do Norte) e pubescens (Região central da América do Norte).


O lúpulo é uma planta herbácea resistente, que vive de 10 a 20 anos, construída a partir de uma raiz igualmente forte chamada rizoma, que armazena carboidratos, e também encontrada, por exemplo, no gengibre. As plantas crescem até 15 metros de altura; na maior parte das plantações, entretanto, a altura é limitada a algo entre 4 e 9 metros, sendo o normal 7 metros. No verão, ápice de seu crescimento, as plantas podem crescer até 50 cm por semana. Trata-se de uma planta muito resistente, capaz de suportar temperaturas tão baixas quanto -30°C. 

Quando selvagem o lúpulo tende a aparecer em zonas com alta concentração de nitrogênio e solo preferencialmente úmido, como pequenos bosques ao longo de rios e lagos (mata ciliar, vegetação ribeirinha), mas não é raro encontrá-lo também na beirada de florestas e em zonas com menor umidade. Geralmente formam pequenos grupos de plantas, restritos a pequenas superfícies. Quando aparece em jardins e parques, devido à grande quantidade de raízes de cada planta individual, não constitui tarefa simples eliminar as plantas intrusas, o que pode vir a gerar grande dor de cabeça, dado que o lúpulo, uma vez que inicia seu crescimento apoiado em alguma outra planta, pode facilmente vir a sufoca-la.


Campos de lúpulo


O lúpulo é uma planta dióica, o que significa dizer que há a planta macho e a planta fêmea. Apenas os cones sem sementes das plantas fêmeas são utilizados na produção cervejeira, entretanto; motivo pelo qual a população de plantas macho é mantida reduzida nos locais de cultivo. Os cones das plantas macho contém apenas cerca de 1/150 da quantidade de resina das plantas fêmeas, além de serem desprovidos de alguns dos óleos essenciais para a produção e aroma da cerveja, contidos nas plantas fêmeas. Além disso, a polinização da planta fêmea pelo pólen da planta macho diminui a quantidade de cones disponíveis na planta, diminui o período útil de colheita da planta, além de dificultar o acerto em termos de dosagem do lúpulo na produção cervejeira futuramente. Existe ainda a ocorrência, ainda que rara, de plantas que pertencem ao mesmo tempo a ambos os gêneros, monóicas.

Experimentos modernos criaram plantas triploides, como a Williamette. Essas plantas são desprovidas de sementes e portanto inférteis, o que em si não constitui problema, uma vez que o lúpulo produzido comercialmente é clonado a partir da raiz, não necessitando de fecundação entre plantas.

A flor do lúpulo, ou cone, é uma flor inflorescente, a qual contém um suporte central chamado strig. O strig contém entre 20 e 60 bracteoles (pétalas), cada um com duas partes fêmeas em sua base, formando assim a flor. O tamanho dessa varia de acordo com a variedade de lúpulo, ficando entre 2 cm em suas menores variantes, e chegando a mais de 5 cm em suas maiores, podendo ter um formato redondo ou alongado. Glândulas lupulins, em sua base, produzem a substância amarelada chamada lupulin, a fonte dos poderes aromatizantes e de conservação do lúpulo. É nessas substâncias que as principais resinas (alfa e beta-ácidos assim como os óleos) estão contidas.

Alfa-ácidos

Os alfa-ácidos, ou humulon, os quais são responsáveis pela maior parte do amargor presente na cerveja, constituindo cerca de 3% a 9% em massa do cone de lúpulo nas variedades aromáticas da planta, e 12% a 20% nas variedades destinadas a conferir amargor. As variantes cujo percentual alcança 20% são chamadas de superalpha bittering varietis, e ainda que tenham aparecido apenas recentemente, já desfrutam de grande prestígio no mercado das cervejas elaboradas atualmente.

Isomerização

Corte mostrando a estrutura interna de um cone
Durante a fervura, os alfa-ácidos são convertidos em iso-alfa-ácidos, solúveis em água, ou isohumulones, os verdadeiros responsáveis pelo amargor. Além disso, os alfa ácidos têm certo efeito bacteriostático, o qual age primordialmente contra a bactéria Gram-positiva, permitindo a ação tranquila da levedura (veja o post acerca desse ilustre ser vivo nesse mesmo blog aqui). Quanto mais demorada a fervura, maior é a isomerização dos ácidos e, por consequência, mais amarga a cerveja. 

Contudo, atenção Hopaholics, isso não significa que vocês devam sair por ai fervendo o mosto até o talo, uma vez que os componentes aromáticos presentes no lúpulo e igualmente importantes, são extremamente voláteis, podendo ser facilmente perdidos. Desta forma, a fervura, e o ponto ideal de para se finalizar a fervura exigem grande habilidade por parte do mestre cervejeiro. Por fim, é claro que o tipo de adição de lúpulo também tem papel fundamental, sendo o procedimento e o resultado diferentes quando se adiciona cones inteiros ou apenas extrato de lúpulo, por exemplo. 

Bem, mas voltando ao processo físico-químico em questão: essa conversão, chamada de isomerização, é o principal objetivo da fervura para o lúpulo, a qual deve ser longa o suficiente para permití-la (ao menos 45 minutos para a maioria dos lúpulos); a isomerização, contudo, pode também ocorrer na ausência de fervura, desde que sejam observados o tempo e a temperatura suficientemente alta. O constante movimento e o contato dos ingredientes devem também ser observados, uma vez que são críticos. Mas voltaremos a falar do uso e do processo de adição mais pra frente.


Os alfa-ácidos são divididos em três componentes de construção molecular muito semelhante: humulone, adhumulone e cohumulone, sendo os dois primeiros desejados e o terceiro evitado na produção de cerveja. O cohumulone, contudo, constitui cerca de 15% a 50% do total de ácidos presentes no lúpulo, dependendo da variedade e da safra. Alta quantidade de cohumulone pode provocar uma consistência menor da espuma, bem como um amargor desagradável, além de serem associados a baixo potencial em termos de aromatização. Dessa forma, é comum o lúpulo ser comercialmente classificado, também, segundo seu teor desse componente.

Já os beta ácidos não se isomerizam ao longo da fervura, e não influenciam de forma significativa no sabor da bebida final. Contudo, são peça fundamental em termos do aroma que se deseja conferir à cerveja. Da mesma forma como os alfa-ácidos, os beta-ácidos são constituídos de três estruturas moleculares muito semelhantes, a saber: lupulone, colupulone e adlupulone

É importante saber, também, que o caráter de determinado lúpulo, em se tratando de amargor e aroma, é diretamente relacionado à razão entre alfa e beta-ácidos. As variedades aromáticas mais procuradas são aquelas com razão próxima de 1:1; o que é difícil de ser alcançado, sendo que a maioria das variedades têm uma razão mais próxima de 2:1. Lúpulos com quantidades de alfa ácidos muito superiores à quantidade de beta ácidos são, evidentemente, os superalfa, como mencionado acima. Antes de 1950, os alfa e beta ácidos eram também chamados de soft resins, devido a sua solubilidade no solvente hexano, e não eram separados em grupos distintos. Igualmente, não foi senão muito tempo depois, que se descobriu técnicas capazes de isolar os diferentes componentes de cada um desses ácidos, de forma que até esse momento, os alfa ácidos eram chamados apenas de humulone, ao passo que os beta ácidos eram apenas lupulones. Lupulone, como já dito, é um forte antibactericida, sendo efetivo, entre outros, contra a chamada Staphylococcus e Clostridium, e responsável pela estabilização micro biológica da bebida ao longo, principalmente, da fervura, a partir do momento da adição do lúpulo.

Óleos essenciais

Os óleos, por sua vez, são os responsáveis por conferir os diferentes aromas às variedades de lúpulo. Dessa forma, há lúpulos que possuem aroma muito cítrico, tal como a variante Cascade, ao passo que o Strisselspalt, por exemplo, tende muito mais a um aroma floral. Os óleos essenciais principais do lúpulo são: humulene, o qual tem um aroma amadeirado, balsâmico; carophyllene, com aroma de pimenta escura; myrcene com aroma floral e farnesene e gardenian com aroma floral. Desses, o farnesene é muitas vezes totalmente ausente, ou então presente em minúsculas quantidades. Outras variedades, tais como linalool, com seu aroma que lembra mexerica, ainda que presentes em apenas quantidades quase desprezíveis, têm um impacto muito acentuado no conjunto aromático de determinados lúpulos.


Plantio e Colheita

O cultivo do lúpulo se aproveita da característica da planta de se emaranhar em torno de praticamente qualquer obstáculo que encontrar pela frente, além de produzir uma folhagem densa ao seu redor. Os primeiros plantios de lúpulo em Nova York, por exemplo, tinham uma forma redonda, na qual as plantas cresciam em torno de suportes próprios, feitos de emaranhados preparados de cânhamo, os quais eram secos de forma a prover sustentação para as plantas. Os plantios modernos, por sua vez, são baseados num sistema de fios metálicos, que como varais pendem entre estacas de madeiras e igualmente servem de sustentação para as plantas. Desses cabos ou fios metálicos são puxados outros cabos para o solo, em formato de V invertido, permitindo que as novas plantas utilizem esses auxílios afim de crescerem até o topo do suporte. De duas a três plantas são afixadas a cada um desses suportes. Assim, aliando-se essa estrutura a uma poda criteriosa e cuidadosa, sem permitir que as plantas fiquem emaranhadas ou que cresçam em demasia ao redor de apenas um cabo, atinge-se uma maximização da produção bem como o controle de doenças e insetos.

Trabalho com lúpulo

Colheita
O início do plantio do lúpulo dá-se anualmente, por volta de março (hemisfério norte). Sua reprodução e plantio, quando cultivado, é feita por meio de estaquia. Quando prontas para a colheita, as plantas são cortadas rente ao solo, arrancadas dos fios que as suportam e levadas para o local de processamento (no hemisfério norte isso se dá por volta da última semana de Agosto e as duas primeiras de Setembro).

A partir desse momento, há formas distintas de como o lúpulo pode chegar até as mãos do mestre cervejeiro. As principais são:

Oasthouse em Kent, Inglaterra
Cones inteiros secos – como o nome já diz, nesse caso o cone, ou flor, é seco sem ser cortado. Historicamente, a secagem era feita nas chamadas Oasthouses, casas de dois ou três andares com um grande forno no térreo. O lúpulo era levado até essas casas e espalhado no chão dos andares superiores. O calor proveniente da fogueira acesa dentro do fogão no térreo subia casa acima, tendo seu trabalho facilitado por orifícios nos pavimentos, e escapando por fim por uma chaminé angulada (cowl) no telhado. Atualmente, o lúpulo é seco em fornos industriais, mas ainda existem Oasthouses, ainda que fora de uso, em várias partes da Europa. Após a secagem, o lúpulo contém aproximadamente 11% de sua umidade original.

Pelotização – O lúpulo é seco em fornos industriais, e em seguida moído e prensado em formas de pelotas (pellets), as quais quando embaladas ao vácuo, além de facilitarem o transporte e melhorarem o rendimento de armazenagem, aumentam consideravelmente sua validade. Caso a embalagem não seja feita de forma adequada, contudo, o produto perde, em um ano, até 35% de seu valor, além de aromas valiosos.
Pellets


Lúpulo fresco – ao invés de serem secos, os cones são levados diretamente da plantação para a cervejaria, trazendo consigo aromas e amargor ainda frescos. Essa variante deve ser utilizada imediatamente, uma vez que tende a apodrecer dentro de pouco tempo. Cervejas que utilizam esse tipo de lúpulo são chamadas de green-hop ou wet-hop-beer.

Extrato de lúpulo – quando os ácidos é óleos são retirados dos cones e processados, sendo utilizadas posteriormente apenas algumas gotas desse concentrado quando da fabricação da cerveja.

Pragas

Mas nem tudo sao rosas quando do plantio de lúpulo. Assim como qualquer outra planta, o lúpulo também é sucetível a ataques de agentes patológicos. Dentre esses, as mais conhecidas pragas são downy mildew (Pseudoperonospora humuli) e powdery mildew (Podosphaera macularis). A resistência à powdery mildew é determinada geneticamente, de forma que os produtores escolhem previamente plantas capazes de resistir à essa praga. 

Da mesma forma, ácaros e pulgões constituem ameaças ás plantas, ainda que possam ser efetivamente controladas por meio da utilização consciente de inseticidas bem como insetos predadores. Por fim há uma série de vírus que podem igualmente afetar as plantações, como o mosaic hop vírus, disseminado pelo pulgão, e praticamente impossível de ser erradicado. Nesse quesito, a Austrália e a Nova Zelândia, dado o seu isolamento geográfico, estão isentos dessas pragas, constiuindo verdadeiros oásis da produção orgânica de lúpulo.

Adição à cerveja


A adição de diferentes tipos de lúpulo, variando entre kettle (amargor) e finishing hops (aroma), controlando bem o momento exato da adição de cada variedade, pode conferir à cerveja um toque único e complexo, balanceado entre amargor e aroma equilibrados.

A seguir, descrevo 5 dos principais modos de adição de lúpulo, baseado na lista semelhante disponível em howtobrew.com:

First Wort Hopping


Um método tradicional é o chamado First Wort Hopping. Nesse caso, é adicionada uma grande porção de lúpulo de aroma ao boil kettle juntamente com o mosto pronto para ser fervido. Enquanto o "panelão"é preenchido, os aromas do lúpulo sao incorporados ao mosto por meio da liberação das resinas e óleos do lúpulo agora aquecido. Ao longo da fervura, esses componentes, muito voláteis, tendem a evaporar e se perder. Ao se permitir essa incorporação gradual antes da fervura, os óleos têm tempo de se transformar em componentes mais estáveis e solúveis, permitindo uma maior retenção ao longo da fervura.

Nesse método, apenas lúpulos de baixo teor de alfa-ácidos devem ser utilizados, e o montante total adicionado dessa forma deve ser de pelo menos 30% de todo o lúpulo considerado. Devido à longa exposição ao lúpulo, o mosto tende a ficar relativamente mais amargo, ainda que não de forma exagerada, graças a utilização de lúpulo com baixo teor de alfa-ácidos. É dito que uma cerveja feita utilizando-se o FWH tende a possuir um aroma mais refinado, um amargor mais uniforme e ter um caráter mais harmonioso do que uma cerveja feita com a mesma quantidade e variedade de lúpulo, mas sem FWH.

Amargor

Os lúpulos de amargor são adicionados no início da fervura, e são fervidos por um período que varia de 45 a 90 minutos, sendo o padrão 60 minutos. Essa fervura, conforme mencionado, tem por objetivo isomerizar os alfa-acidos. Existe um ganho de isomerização quando a fervura passa de 45 minutos em direção aos 90, na casa de 5%; já o ganho além dessa marca não passa de 1%. Os óleos aromáticos, devido ao longo tempo de fervura e sua volatilidade, tendem a evaporar, restando quantidades ínfimas na mistura. Isso permite a utilização das variantes chamadas superalfa, para prover a estrutural central de amargor, sem prejudicar sabor e aroma do produto acabado. Dessa forma, em termos de custo, vale mais a pena utilizar uma medida de superalfa e finalizar a bebida com lúpulo de aroma (mais caro que lúpulo de amargor), do que buscar o equilíbrio utilizando duas medidas de lúpulo de amargor médio.

Sabor

Adicionar o lúpulo aproximadamente na metade da fervura, tende a estabelecer um equilíbrio entre a isomerização dos alfa-acidos e a evaporação dos oleos essenciais, resultando em aromas e um sabor característicos. A adição do lúpulo nesse caso se dá em um intervalo que varia de 40 a 20 minutos para o fim da fervura, sendo o padrão 30 minutos. Todo tipo de lúpulo pode ser utilizado a principio; geralmente são escolhidas variedades com teor de alfa-acidos baixo, ainda que variantes com altos niveis, tais como Columbus e Challenger possam igualmente prover bons resultados. A mistura de varias variantes, nesse estilo, é muito comum.

Finishing

Quando o lúpulo é adicionado nos minutos finais da fervura, menos óleos sao perdidos devido à evaporação, conservando-se características mais aromáticas na mistura. Nesse caso, uma ou mais variedades podem ser utilizadas, dependendo do aroma almejado. O lúpulo é adicionado quando faltam cerca de 15 minutos para o fim da fervura, ou no momento em que a mistura deixa de ser aquecida, e atuam cerca de 10 minutos até que o mosto passa a ser resfriado. Em alguns casos, o mosto, quando deixa de ser aquecido, é circulado por dentro de um reservatório contendo lúpulo fresco, antes de entrar numa serpentina de resfriação.


Dry Hopping

O lúpulo pode também ser adicionado apenas quando da fermentação ou já no armazenamento da bebida, afim de aumentar o aroma da cerveja. Esse processo é denominado dry hopping e deve ser feito já nos últimos estágios de fermentação, quando o aparecimento de bolhas e espuma já tiverem cessado. Caso o lúpulo seja adicionado antes disso, grande parte dos óleos irá se perder através da exaustão do gás carbônico. Muitas vezes é utilizado um saco de nylon no qual o lúpulo é depositado e então mergulhado na cerveja, afim de facilitar a sua remoção em seguida. O dry hopping é indicado para vários estilos de pale ales e lagers.

Locais de produção

Atualmente, grandes centros de produção de lúpulo são: Alemanha, Austrália, Bélgica, China (Xinjiang), República Tcheca, Rússia (Chuvashia), Polônia (Lublin) e Nova Zelândia.
Colheita

Conclusão (Futuro do lúpulo)

O futuro do lúpulo como ingrediente da cerveja parece assegurado, ainda que de maneira “dividida”. Embora o consumo de cerveja, principalmente aquelas minimamente lupuladas, com valores de IBU meramente acima do limiar do perceptível, esteja crescendo em mercados como a América Latina, Ásia e África, o consumo dessas cervejas leves está perdendo espaço em mercados tradicionais, que vêem o consumo de cerveja estagnado ou até mesmo em declínio. A saber, a Alemanha teve leve crescimento em termos de consumo de cerveja no ano de 2014, após registrar seu pior ano em 2013. Mesmo assim, esse crescimento se deve largamente ao inverno curto, ao calor fora do normal no verão e , claro, à Copa do Mundo. Por outro lado, o consumo de cervejas fortemente lupuladas, bem como cervejas com aromas e sabores mais complexos e trabalhados vem crescendo. Para os produtores e comerciantes de lúpulo, esse cenário conflitante traz uma conclusão óbvia, de que a busca e, portanto, a produção de variedades de lúpulo com teores de alfa ácidos elevados, bem como lúpulos cujo forte seja um aroma diferenciado, tende a crescer, em detrimento da produção de lúpulos leves, como os utilizados na maior parte das lagers de produção em massa, isso ao menos nos mercados tradicionais. Ao que parece, podemos estar entrando na era mais lupulada da história da cerveja, em mais de 1200 anos desde o início do uso desse ilustre conezinho verde.

Referências:


  • The Oxford Companion to Beer - Garrett Oliver
  • Let Me Tell You About Beer - Melissa Cole
  • Larousse da Cerveja - Ronaldo Morado
  • howtobrew.com
  • wikipedia.de
  • beerhunter.com



Danke fürs Lesen, wir hopfen alles Gute!

2 comentários:

  1. Senhor Stein, muito bom seu artigo, bastante completo em termos históricos e práticos, sobretudo o tópico sobre FWH, me deu várias idéias criativas na produção das minhas cervejas, só não entendi a parte "chata" que o senhor pode ter encontrado no caminho desta pesquisa. De antemão, agradeço pelo seu esforço para trazer mais conhecimento. Obrigado, Rodolfo Ramos

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    1. Olá meu caro. Fico muito feliz em ler suas palavras. Realmente não é fácil juntar as informações e posteriormente montar um texto que agrade em sua leitura.
      Convido a dar uma olhada no restante do blog também, e espero que goste.

      Forte abraço.
      Stein

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