domingo, 22 de dezembro de 2013

Malte

A maltagem é o processo no qual determinado grão em estado cru é preparado através de um processo específico e seguindo uma dada sequência de forma a alterar as suas características originais a fim de se obter malte, o qual é, juntamente com a água, o lúpulo e o levedo, um dos principais ingredientes na produção de virtualmente qualquer cerveja. Todo e qualquer grão pode passar por esse processo.
A maltagem é essencialmente o primeiro passo na fabricação de cervejas. Uma das principais funções desse processo é quebrar as proteínas contidas no grão, liberar as suas enzimas e modificar o amido, necessários para a posterior fabricação.
Basicamente, no processo de maltagem, o grão é macerado em água, depois, guardado sob condições controladas que estimulam a sua germinação, e finalmente seco em forno e/ou torrador.

Para muitos maltes especiais, há dois outros passos, a guarda em estufa e/ou a torrefação, de preferência ambos em um tonel rotativo de torrefação. A duração e a temperatura de cada um desses passos afeta tecnicamente o malte pronto, bem como seu sabor e coloração, e a escolha adequada de cada critério/parâmetro varia de profissional para profissional, e de um tipo de malte para outro.  As variedades de malte incluem os maltes bem claros e doces, aqueles de coloração âmbar, os quase pretos até aqueles que em muito lembram café, passando por inúmeros outros tipos. Geralmente, o mestre-cervejeiro tende a escolher uma determinada combinação de maltes a fim de atingir seu objetivo. Assim como as uvas no vinho, a cevada (e outros grãos) e o malte dela oriundo dependem da espécie em questão e do solo em que foi cultivada, proporcionando diferenças profundas em termos de sabor, coloração, aroma e corpo.

Profissionalmente falando, a pessoa que cuida do processo recebe o nome de Mälzer, em alemão, ou maltster, em inglês (não encontrei a designação em português ainda). A maior parte das cervejarias atualmente compra seu malte de indústrias especializadas nesse processo, as maltarias, outras possuem a sua própria maltaria in house.


OS GRÃOS

A maior parte do malte para produção de cerveja é feita a partir de cevada e trigo. Taxonomicamente esses grãos pertencem a família Gramineae, um grupo de cereais que incluem também o bambu, milho, painço, aveia, arroz, centeio entre outros. Um dos poucos “não-grãos” que podem ser maltados é o chamado trigo sarraceno, que apesar do nome é na verdade um fruto (comestível) da família de ervas Fagopyrum. As sementes dos grãos contém a maior parte dos nutrientes – basicamente carboidratos, proteínas e gorduras - que as plantas precisarão para a sua germinação e reprodução, estando esses compactados em complexas estruturas moleculares.  A maltagem é responsável por fazer com que esses elementos se tornem úteis e formem a base da futura cerveja.
Os miolos dos grãos são duros e compactos. No caso da cevada, o grão possui uma casca feita por duas folhas de casca. Quando não são colhidos ou viram comida de animais, os grãos se desprendem do vegetal e caem no solo, onde permanecem do outono ao inverno. Para a sua proteção, a casca possui tanino, um polifenól adstringente que age na proteção dos nutrientes contra mofo, pragas e apodrecimento. Quando os primeiros raios de verão atingem o grão no solo, esse rapidamente “volta à vida” por meio da absorção da umidade do ambiente (em regiões com incidência de neve, a umidade advinda da neve derretida tem papel fundamental na hidratação dos grãos). Durante essa hidratação, uma série de reações químicas ocorre no interior do grão, o que leva ao desenvolvimento de raízes e de uma tímida parte aérea da futura plantinha. O processo de maltagem procura aproveitar exatamente o mesmo mecanismo, mas nesse caso não para fazer nascer uma nova planta, mas para preparar o grão para a produção cervejeira. Evidentemente houve uma série de avanços ao longo dos milênios em termos tecnológicos e de processo, mas o básico da maltagem permanece inalterado e procura apenas seguir o mesmo que ocorre na natureza.
Sendo a cevada o grão de maior importância em termos de fabricação de malte atualmente, vale ressaltar que existem essencialmente duas variedades de cevada, a de duas e a de seis fileiras. A variedade de duas fileiras, entretanto, é a mais popular quando da maltagem, em função de seu maior tamanho e consequente maior rendimento.

NO SILO

Após a colheita, os grãos são guardados em silos, dentro dos quais a temperatura é cuidadosamente regulada, assim como a umidade e aeração, a fim de evitar o apodrecimento. No caso da cevada, a umidade do grão à época da colheita se situa entre 12% e 17% em termos de peso. Uma vez dentro do silo, a umidade deve ser mantida abaixo de 14%. Ainda que os grãos estejam em estado dormente dentro dos silos, assim como o são quando ficam caídos no solo, eles permanecem vivos, demandando uma pequena quantidade de oxigênio, e liberando uma pequena quantidade de gás carbônico, e essa é a razão para a aeração. Naturalmente, roedores e outras pestes devem ser mantidas longe dos silos.
Existem critérios extremamente rígidos quando da separação de grãos entre aqueles destinados à fabricação de cerveja e aqueles utilizados na alimentação. Falando em termos de cevada, os grãos devem ter uma homogeneidade de no mínimo 90% por amostragem, e nenhum grão deve ter diâmetro inferior a 2,2mm. Uma amostra na qual mais do que 95% dos grãos possui um diâmetro superior a 2,5mm é considerada excelente. Além disso, a quantidade média de proteínas dos grãos deve ser superior a 10% e inferior a 12%. No caso do trigo a quantidade de proteínas não deve ultrapassar os 13%.

A MALTAGEM EM SI


Maceração

Quando os grãos estão prontos para a maltagem, eles são primeiramente limpos de todo e qualquer vestígio de sujeira, pó e outros elementos estranhos. Isso ocorre em grandes tonéis ou cubas que são preenchidos com água limpa e fresca e drenados ciclicamente. A fase em que a água está presente dura cerca de 8 horas, e a fase “seca” 12 horas, mas essas proporções podem variar de acordo com a cervejaria. A temperatura média da maceração se encontra entre 12°C e 15°C. Durante a fase em que o tonel está preenchido com água, ar é bombeado na parte de baixo do reservatório a fim de fornecer uma quantidade suficiente de oxigênio aos grãos e para manter o conteúdo em movimento. O tonel também é transbordado ciclicamente de modo que quaisquer partículas estranhas que estejam flutuando na superfície possam ser eliminadas. Já durante a fase seca o ar é sugado através do fundo do tonel a fim de eliminar o gás carbônico oriundo da respiração dos grãos e para abastecê-los com oxigênio novo vindo da abertura superior do reservatório.
Durante esse tempo, o grão absorve umidade, responsável por ativar determinadas enzimas naturalmente inclusas no grão e que são capazes de quebrar complexas estruturas moleculares, mais precisamente proteínas e carboidratos. Além disso, alguns hormônios responsáveis pelo crescimento da futura planta são igualmente ativados.

Germinação

Após esse período, que varia de 20 a 48 horas, a umidade dos grãos está entre 38% e 40%, e pequenas raízes (chits) aparecem em todos os grãos. O grão é então considerado completamente hidratado e é levado para a sala de germinação, mantida a uma temperatura entre 14°C e 19°C, igualmente com umidade e temperatura controlada.
Lá o grão é mantido de forma arejada por um período de 4 a 6 dias, sendo virado com frequência. O fato de os grãos serem virados com frequência evita que as suas pequenas raízes se enlacem, além de liberar umidade, gás carbônico e calor produzidos pela respiração dos grãos. Atualmente há máquinas responsáveis por revirar os grãos, entretanto, ao longo de milhares de anos essa tarefa foi feita de forma manual.
Durante a germinação, as enzimas aceleram em muito a sua atividade, produzindo açúcares, amido solúvel, e nutrientes importantes para o levedo, como os aminoácidos.

Secagem

Agora o grão está pronto para ser totalmente seco; para tanto, ele é removido ao forno. É nessa etapa que serão formados os aromas típicos do malte. A temperatura no interior do forno, entre 80°C e 90°C, mantida durante 2 a 4 horas, é responsável por matar o embrião do brotinho e eliminar as radículas, mantendo, contudo, os seus nutrientes, de forma que o grão não sirva mais para dar origem a uma nova planta, mas sim para efetivamente entrar no processo de fabricação da cerveja. As alterações e modificações enzimáticas, que tiveram início lá na maceração e continuaram através da germinação, continuam ocorrendo também durante a etapa inicial de aquecimento do grão. Quando o grão seca por completo e se torna malte propriamente dito, as enzimas param suas atividades e consequentemente acabam as modificações. Mais trade, durante a mostura, essas enzimas voltarão à atividade sendo ativadas pelo calor e pela umidade. Ao final do processo, o malte contém de 3% a 6% de umidade - eliminando assim o risco de mofo - estando bem mais leve que no início do processo e facilitando sua estocagem durante meses.
Quando da secagem, é preciso tomar cuidado com a velocidade do processo. Malte que foi seco muito rapidamente geralmente é considerado de baixa qualidade, pois quando o grão experimenta uma perda de umidade excessivamente rápida durante a fase de secagem, os poros do grão maltado podem se reduzir a ponto de serem fechados. Isso torna o grão mais duro e menos “farinhento” (mealy), dificultando a moagem posterior.

Variações

Beercolor.com
Existe nesse ponto uma separação entre os diferentes tipos de malte, cada um de acordo com suas características em termos de fabricação de cerveja e culinária: malte básico, malte caramelo, malte torrado, malte cristal entre outros. Para maltes especiais, tais como o malte caramelo, chocolate e malte cristal, o processo é semelhante àquele dos maltes básicos, com algumas poucas alterações, destinadas a conferir coloração e sabor especial ao malte.

Básicos

Os maltes básicos geralmente são secos de forma lenta e moderada, têm aspecto claro e alto teor de enzimas. Esse malte geralmente contribui com cerca de 50% do teor de malte no mosto. Dessa forma, todos os outros maltes não básicos podem ser considerados maltes especiais. Esses maltes adicionam diferentes graus de coloração, aroma, sabor e textura ao produto acabado.

Cristal

Malte cristal
Maltes secos em fornos, após a maceração, a germinação e a secagem, a temperaturas de aproximadamente 140°C são chamados de Crystal malts, ou maltes cristal.


Caramelo

Os maltes caramelo requerem um quarto passo, no qual repousam em estufas. Para tanto, o malte é posto em um tambor circular após a sua germinação, ao invés de ser enviado ao forno. Lá o malte é aquecido imediatamente até uma temperatura entre 64°C e 72°C, a temperatura ideal para a amilase dos ácidos com alto teor de alfa e beta-ácidos. Nessa temperatura o malte é mantido pro aproximadamente uma hora. Esse processo garante que a sacarificação enzimática ocorra no interior de cada grão. Em seguida o processo é encerrado no forno ou no próprio reservatório. Quando enviado ao forno, a secagem ocorre em um processo a cerca de 90°C, o que leva os açúcares a se caramelizarem até se tornarem dextrinas duras, vítreas e não-fermentáveis. Se o malte é secado no próprio reservatório, por outro lado, o ciclo de secagem ocorre a aproximadamente 200°C, o que faz não apenas com que os açúcares se caramelizem em dextrinas não fermentáveis, mas também que o miolo do grão seja torrado por completo. O tempo e a temperatura desse processo dependem da coloração e do grau de torra desejado, mas o resultado é sempre um malte de coloração e sabor intenso. Considerando que a caramelização destrói de forma irreversível as enzimas do malte, os grãos que passaram por esse processo dificilmente compõe mais do que 50% da cota de malte nas cervejas que deles fazem uso.

Historicamente, o primeiro malte caramelo foi feito por Weyermann e patenteado na Alemanha sob os direitos da Carapils, em 1903. Esse tipo de malte naturalmente confere à cerveja um sabor doce de malte bastante característico.

Chocolate e torrados

Malte chocolate - themaltmiller.co.uk
Maltes chocolate e maltes torrados são ligeiramente mais fortes em aroma e coloração que os maltes Crystal e caramelo. Eles são produzido levando-se o malte, após a maceração, germinação e secagem, mas sem que ele tenha passado pelo forno - e após um descanso de 1 mês - para um torrador rotativo. Lá o malte é aquecido a aproximadamente 250°C, liquefazendo o açúcar nele contido; depois esse malte é torrado afim de caramelizar o açúcar. Após esse processo os maltes resultantes têm aparência extremamente escura, apresentando um sabor picante e amargo. Alguns fabricantes preferem levar o malte ao forno sem rotacioná-lo, entretanto, isso resulta num malte menos homogêneo, devido ao aquecimento desigual entre a parte de baixo e o topo do malte depositado.
Certos tipos de malte torrado podem existir de duas formas: normal e descascados. Quando o malte é descascado, a casca provida de tanino é removida antes mesmo do início do processo de maltagem. Maltes torrados desprovidos de casca têm sabor mais suave, com amargor reduzido, assim como seu sabor torrado, mas apresentam a mesma coloração. Esses maltes adicionam um sabor bem torrado à cerveja pronta. A torrefação feita com pouca umidade não resulta numa caramelização, mas confere coloração e sabor torrado ao malte. Temperaturas de secagem mais alta resultarão em sabor e aroma mais fortes, contudo, as enzimas podem ser permanentemente desnaturadas, e por causa de sua intensidade em sabor e coloração, raramente compõe mais do que 5% da mistura.

Defumados

Por fim, há muitos tipos de maltes defumados, os quais são secos e germinados e em seguida aquecidos em fornos sob a ação direta do fogo. Esses fornos são construídos de modo a permitir a filtragem da fumaça através dos próprios grãos. O uso de turfas é preferível na fabricação de Whisky, ao passo que a utilização de madeira de faia confere ao Bamberger Malz (ou Rauchmalz) e à cerveja Rauchbier (veja artigo sobre Rauchbier aqui), feita a partir dele, o seu aroma e sabor característicos. Antes do advento das modernas técnicas de secagem e aquecimento, o malte costumava ser seco sempre sobre o fogo, de modo que as cervejas em geral possuíam o que hoje chamamos de sabor defumado e que está presente em uma gama relativamente pequena de cervejas. 

Até hoje, o malte é um dos, se não o ingrediente mais importantes para a manipulação do sabor da cerveja, podendo de fato direcionar o mosto em uma ou outra direção. As diferenças na maltagem explicam também, porque cervejas possuem um leque ridiculamente maior de sabores e estilos do que, por exemplo, o vinho. A cerveja pode ter sabores e aromas que lembram chocolate, caramelo, espresso, biscuit ou pão, e a base para todos esses sabores é nada mais nada menos que o malte.

Espero que esse texto possa ter ajudado a entender um pouco mais a importância do malte na constituição da cerveja, as infinitas possibilidades de se experimentar com maltes e misturas de malte diferentes, além de elucidar de forma simples e resumida como o grão passa de grão para malte; dos campos e fazendas para o copo.

O artigo ainda não está completo, pretendo em breve escrever alguns “anexos” ao texto, explicando um pouco melhor principalmente os diferentes tipos de malte. Mas por hora espero que o que foi escrito possa ser útil.

Wir hopfen alles Gute!
Wilhelm Stein



Outros artigos relacionados ao malte nesse blog:
  • Roggenbier – Sobre a utilização de centeio ao invés dos tradicionais cevada e trigo.
  • Rauchbier – Sobre a mais famosa dentre as cervejas a fazerem uso do malte defumado.
  • Levedo – O fungo responsável por fermentar os açúcares mencionados nesse texto.
  • Chocolate – Tratando um pouco sobre como o malte pode fornecer o gosto de chocolate à cerveja.


Referências

  • The Oxford Companion to Beer - Garrett Oliver
  • Let Me Tell You About Beer - Melissa Cole
  • Larousse da Cerveja - Ronaldo Morado

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