A maltagem é o processo no qual determinado grão em
estado cru é preparado através de um processo específico e seguindo uma dada
sequência de forma a alterar as suas características originais a fim de se
obter malte, o qual é, juntamente com a água, o lúpulo e o levedo, um dos
principais ingredientes na produção de virtualmente qualquer cerveja. Todo e qualquer grão pode passar por esse processo.
A maltagem é essencialmente o primeiro passo na
fabricação de cervejas. Uma das principais funções desse processo é quebrar as
proteínas contidas no grão, liberar as suas enzimas e modificar o amido,
necessários para a posterior fabricação.
Basicamente, no processo de maltagem, o grão é
macerado em água, depois, guardado sob condições controladas que estimulam a
sua germinação, e finalmente seco em forno e/ou torrador.
Para muitos maltes especiais, há dois outros passos, a
guarda em estufa e/ou a torrefação, de preferência ambos em um tonel rotativo
de torrefação. A duração e a temperatura de cada um desses passos afeta
tecnicamente o malte pronto, bem como seu sabor e coloração, e a escolha
adequada de cada critério/parâmetro varia de profissional para profissional, e
de um tipo de malte para outro. As variedades
de malte incluem os maltes bem claros e doces, aqueles de coloração âmbar, os quase
pretos até aqueles que em muito lembram café, passando por inúmeros outros
tipos. Geralmente, o mestre-cervejeiro tende a escolher uma determinada
combinação de maltes a fim de atingir seu objetivo. Assim como as uvas no
vinho, a cevada (e outros grãos) e o malte dela oriundo dependem da espécie em
questão e do solo em que foi cultivada, proporcionando diferenças profundas em
termos de sabor, coloração, aroma e corpo.
Profissionalmente falando, a pessoa que cuida do
processo recebe o nome de Mälzer, em
alemão, ou maltster, em inglês (não
encontrei a designação em português ainda). A maior parte das cervejarias
atualmente compra seu malte de indústrias especializadas nesse processo, as
maltarias, outras possuem a sua própria maltaria in house.
OS GRÃOS
A maior parte do malte para produção de cerveja é
feita a partir de cevada e trigo. Taxonomicamente esses grãos pertencem a
família Gramineae, um grupo de
cereais que incluem também o bambu, milho, painço, aveia, arroz, centeio entre
outros. Um dos poucos “não-grãos” que podem ser maltados é o chamado trigo
sarraceno, que apesar do nome é na verdade um fruto (comestível) da família de
ervas Fagopyrum. As sementes dos
grãos contém a maior parte dos nutrientes – basicamente carboidratos, proteínas
e gorduras - que as plantas precisarão para a sua germinação e reprodução, estando
esses compactados em complexas estruturas moleculares. A maltagem é responsável por fazer com que
esses elementos se tornem úteis e formem a base da futura cerveja.
Os miolos dos grãos são duros e compactos. No caso da
cevada, o grão possui uma casca feita por duas folhas de casca. Quando não são
colhidos ou viram comida de animais, os grãos se desprendem do vegetal e caem
no solo, onde permanecem do outono ao inverno. Para a sua proteção, a casca
possui tanino, um polifenól adstringente que age na proteção dos nutrientes
contra mofo, pragas e apodrecimento. Quando os primeiros raios de verão atingem
o grão no solo, esse rapidamente “volta à vida” por meio da absorção da umidade
do ambiente (em regiões com incidência de neve, a umidade advinda da neve
derretida tem papel fundamental na hidratação dos grãos). Durante essa
hidratação, uma série de reações químicas ocorre no interior do grão, o que
leva ao desenvolvimento de raízes e de uma tímida parte aérea da futura
plantinha. O processo de maltagem procura aproveitar exatamente o mesmo
mecanismo, mas nesse caso não para fazer nascer uma nova planta, mas para preparar
o grão para a produção cervejeira. Evidentemente houve uma série de avanços ao
longo dos milênios em termos tecnológicos e de processo, mas o básico da
maltagem permanece inalterado e procura apenas seguir o mesmo que ocorre na
natureza.
Sendo a cevada o grão de maior importância em termos
de fabricação de malte atualmente, vale ressaltar que existem essencialmente
duas variedades de cevada, a de duas e a de seis fileiras. A variedade de duas
fileiras, entretanto, é a mais popular quando da maltagem, em função de
seu maior tamanho e consequente maior rendimento.
NO SILO
Após a colheita, os grãos são guardados em silos,
dentro dos quais a temperatura é cuidadosamente regulada, assim como a umidade
e aeração, a fim de evitar o apodrecimento. No caso da cevada, a umidade do
grão à época da colheita se situa entre 12% e 17% em termos de peso. Uma vez
dentro do silo, a umidade deve ser mantida abaixo de 14%. Ainda que os grãos
estejam em estado dormente dentro dos silos, assim como o são quando ficam
caídos no solo, eles permanecem vivos, demandando uma pequena quantidade de
oxigênio, e liberando uma pequena quantidade de gás carbônico, e essa é a razão
para a aeração. Naturalmente, roedores e outras pestes devem ser mantidas longe
dos silos.
Existem critérios extremamente rígidos quando da
separação de grãos entre aqueles destinados à fabricação de cerveja e aqueles utilizados
na alimentação. Falando em termos de cevada, os grãos devem ter uma
homogeneidade de no mínimo 90% por amostragem, e nenhum grão deve ter diâmetro
inferior a 2,2mm. Uma amostra na qual mais do que 95% dos grãos possui um
diâmetro superior a 2,5mm é considerada excelente. Além disso, a quantidade
média de proteínas dos grãos deve ser superior a 10% e inferior a 12%. No caso
do trigo a quantidade de proteínas não deve ultrapassar os 13%.
A MALTAGEM EM SI
Maceração
Quando os grãos estão prontos para a maltagem, eles
são primeiramente limpos de todo e qualquer vestígio de sujeira, pó e outros
elementos estranhos. Isso ocorre em grandes tonéis ou cubas que são preenchidos
com água limpa e fresca e drenados ciclicamente. A fase em que a água está
presente dura cerca de 8 horas, e a fase “seca” 12 horas, mas essas proporções
podem variar de acordo com a cervejaria. A temperatura média da maceração se
encontra entre 12°C e 15°C. Durante a fase em que o tonel está preenchido com
água, ar é bombeado na parte de baixo do reservatório a fim de fornecer uma
quantidade suficiente de oxigênio aos grãos e para manter o conteúdo em
movimento. O tonel também é transbordado ciclicamente de modo que quaisquer
partículas estranhas que estejam flutuando na superfície possam ser eliminadas.
Já durante a fase seca o ar é sugado através do fundo do tonel a fim de
eliminar o gás carbônico oriundo da respiração dos grãos e para abastecê-los
com oxigênio novo vindo da abertura superior do reservatório.
Durante esse tempo, o grão absorve umidade, responsável
por ativar determinadas enzimas naturalmente inclusas no grão e que são capazes
de quebrar complexas estruturas moleculares, mais precisamente proteínas e
carboidratos. Além disso, alguns hormônios responsáveis pelo crescimento da
futura planta são igualmente ativados.
Germinação
Após esse período, que varia de 20 a 48 horas, a umidade
dos grãos está entre 38% e 40%, e pequenas raízes (chits) aparecem em todos os grãos. O grão é então considerado
completamente hidratado e é levado para a sala de germinação, mantida a uma
temperatura entre 14°C e 19°C, igualmente com umidade e temperatura controlada.
Lá o grão é mantido de forma arejada por um período de
4 a 6 dias, sendo virado com frequência. O fato de os grãos serem virados com
frequência evita que as suas pequenas raízes se enlacem, além de liberar
umidade, gás carbônico e calor produzidos pela respiração dos grãos. Atualmente
há máquinas responsáveis por revirar os grãos, entretanto, ao longo de milhares
de anos essa tarefa foi feita de forma manual.
Durante a germinação, as enzimas aceleram em muito a
sua atividade, produzindo açúcares, amido solúvel, e nutrientes importantes
para o levedo, como os aminoácidos.
Secagem
Agora o grão está pronto para ser totalmente seco;
para tanto, ele é removido ao forno. É nessa etapa que serão formados os aromas
típicos do malte. A temperatura no interior do forno, entre 80°C e 90°C,
mantida durante 2 a 4 horas, é responsável por matar o embrião do brotinho e
eliminar as radículas, mantendo, contudo, os seus nutrientes, de forma que o grão
não sirva mais para dar origem a uma nova planta, mas sim para efetivamente
entrar no processo de fabricação da cerveja. As alterações e modificações
enzimáticas, que tiveram início lá na maceração e continuaram através da
germinação, continuam ocorrendo também durante a etapa inicial de aquecimento
do grão. Quando o grão seca por completo e se torna malte propriamente dito, as
enzimas param suas atividades e consequentemente acabam as modificações. Mais
trade, durante a mostura, essas enzimas voltarão à atividade sendo ativadas
pelo calor e pela umidade. Ao final do processo, o malte contém de 3% a 6% de
umidade - eliminando assim o risco de mofo - estando bem mais leve que no
início do processo e facilitando sua estocagem durante meses.
Quando da secagem, é preciso tomar cuidado com a
velocidade do processo. Malte que foi seco muito rapidamente geralmente é
considerado de baixa qualidade, pois quando o grão experimenta uma perda de
umidade excessivamente rápida durante a fase de secagem, os poros do grão
maltado podem se reduzir a ponto de serem fechados. Isso torna o grão mais duro
e menos “farinhento” (mealy),
dificultando a moagem posterior.
Variações
Beercolor.com |
Existe nesse ponto uma separação entre os diferentes
tipos de malte, cada um de acordo com suas características em termos de
fabricação de cerveja e culinária: malte básico, malte caramelo, malte torrado,
malte cristal entre outros. Para maltes especiais, tais como o malte caramelo,
chocolate e malte cristal, o processo é semelhante àquele dos maltes básicos,
com algumas poucas alterações, destinadas a conferir coloração e sabor especial
ao malte.
Básicos
Os maltes básicos geralmente são secos de forma lenta
e moderada, têm aspecto claro e alto teor de enzimas. Esse malte geralmente
contribui com cerca de 50% do teor de malte no mosto. Dessa forma, todos os
outros maltes não básicos podem ser considerados maltes especiais. Esses maltes
adicionam diferentes graus de coloração, aroma, sabor e textura ao produto
acabado.
Cristal
Malte cristal |
Maltes secos em fornos, após a maceração, a germinação
e a secagem, a temperaturas de aproximadamente 140°C são chamados de Crystal malts, ou maltes cristal.
Caramelo
Os maltes caramelo requerem um quarto passo, no qual repousam
em estufas. Para tanto, o malte é posto em um tambor circular após a sua
germinação, ao invés de ser enviado ao forno. Lá o malte é aquecido
imediatamente até uma temperatura entre 64°C e 72°C, a temperatura ideal para a
amilase dos ácidos com alto teor de alfa e beta-ácidos. Nessa temperatura o
malte é mantido pro aproximadamente uma hora. Esse processo garante que a
sacarificação enzimática ocorra no interior de cada grão. Em seguida o processo
é encerrado no forno ou no próprio reservatório. Quando enviado ao forno, a secagem
ocorre em um processo a cerca de 90°C, o que leva os açúcares a se
caramelizarem até se tornarem dextrinas duras, vítreas e não-fermentáveis. Se o
malte é secado no próprio reservatório, por outro lado, o ciclo de secagem
ocorre a aproximadamente 200°C, o que faz não apenas com que os açúcares se
caramelizem em dextrinas não fermentáveis, mas também que o miolo do grão seja
torrado por completo. O tempo e a temperatura desse processo dependem da
coloração e do grau de torra desejado, mas o resultado é sempre um malte de
coloração e sabor intenso. Considerando que a caramelização destrói de forma
irreversível as enzimas do malte, os grãos que passaram por esse processo
dificilmente compõe mais do que 50% da cota de malte nas cervejas que deles
fazem uso.
Historicamente, o primeiro malte caramelo foi feito
por Weyermann e patenteado na Alemanha sob os direitos da Carapils, em 1903.
Esse tipo de malte naturalmente confere à cerveja um sabor doce de malte
bastante característico.
Chocolate e torrados
Malte chocolate - themaltmiller.co.uk |
Maltes chocolate e maltes torrados são ligeiramente
mais fortes em aroma e coloração que os maltes Crystal e caramelo. Eles são
produzido levando-se o malte, após a maceração, germinação e secagem, mas sem
que ele tenha passado pelo forno - e após um descanso de 1 mês - para um
torrador rotativo. Lá o malte é aquecido a aproximadamente 250°C, liquefazendo
o açúcar nele contido; depois esse malte é torrado afim de caramelizar o açúcar.
Após esse processo os maltes resultantes têm aparência extremamente escura,
apresentando um sabor picante e amargo. Alguns fabricantes preferem levar o
malte ao forno sem rotacioná-lo, entretanto, isso resulta num malte menos
homogêneo, devido ao aquecimento desigual entre a parte de baixo e o topo do
malte depositado.
Certos tipos de malte torrado podem existir de duas
formas: normal e descascados. Quando o malte é descascado, a casca provida de
tanino é removida antes mesmo do início do processo de maltagem. Maltes
torrados desprovidos de casca têm sabor mais suave, com amargor reduzido, assim
como seu sabor torrado, mas apresentam a mesma coloração. Esses maltes adicionam um sabor bem torrado à cerveja pronta. A torrefação
feita com pouca umidade não resulta numa caramelização, mas confere coloração e
sabor torrado ao malte. Temperaturas de secagem mais alta resultarão em sabor e
aroma mais fortes, contudo, as enzimas podem ser permanentemente desnaturadas,
e por causa de sua intensidade em sabor e coloração, raramente compõe mais do
que 5% da mistura.
Defumados
Por fim, há muitos tipos de maltes defumados, os quais
são secos e germinados e em seguida aquecidos em fornos sob a ação direta do
fogo. Esses fornos são construídos de modo a permitir a filtragem da fumaça
através dos próprios grãos. O uso de turfas é preferível na fabricação de Whisky, ao passo que a utilização de
madeira de faia confere ao Bamberger Malz
(ou Rauchmalz) e à cerveja Rauchbier (veja artigo sobre Rauchbier aqui),
feita a partir dele, o seu aroma e sabor característicos. Antes do advento das
modernas técnicas de secagem e aquecimento, o malte costumava ser seco sempre
sobre o fogo, de modo que as cervejas em geral possuíam o que hoje chamamos de
sabor defumado e que está presente em uma gama relativamente pequena de
cervejas.
Até hoje, o malte é um dos, se não o ingrediente mais importantes para a manipulação do sabor da cerveja, podendo de fato direcionar o mosto em uma ou outra direção. As diferenças na maltagem explicam também, porque cervejas possuem um leque ridiculamente maior de sabores e estilos do que, por exemplo, o vinho. A cerveja pode ter sabores e aromas que lembram chocolate, caramelo, espresso, biscuit ou pão, e a base para todos esses sabores é nada mais nada menos que o malte.
Até hoje, o malte é um dos, se não o ingrediente mais importantes para a manipulação do sabor da cerveja, podendo de fato direcionar o mosto em uma ou outra direção. As diferenças na maltagem explicam também, porque cervejas possuem um leque ridiculamente maior de sabores e estilos do que, por exemplo, o vinho. A cerveja pode ter sabores e aromas que lembram chocolate, caramelo, espresso, biscuit ou pão, e a base para todos esses sabores é nada mais nada menos que o malte.
Espero que esse texto possa ter ajudado a
entender um pouco mais a importância do malte na constituição da cerveja, as
infinitas possibilidades de se experimentar com maltes e misturas de malte
diferentes, além de elucidar de forma simples e resumida como o grão passa de
grão para malte; dos campos e fazendas para o copo.
O artigo ainda não está completo, pretendo
em breve escrever alguns “anexos” ao texto, explicando um pouco melhor
principalmente os diferentes tipos de malte. Mas por hora espero que o que foi escrito possa ser útil.
Wir hopfen alles Gute!
Wilhelm Stein
Wilhelm Stein
Outros artigos relacionados ao malte nesse blog:
- Roggenbier – Sobre a utilização de centeio ao invés dos tradicionais cevada e trigo.
- Rauchbier – Sobre a mais famosa dentre as cervejas a fazerem uso do malte defumado.
- Levedo – O fungo responsável por fermentar os açúcares mencionados nesse texto.
- Chocolate – Tratando um pouco sobre como o
malte pode fornecer o gosto de chocolate à cerveja.
Referências
- The Oxford Companion to Beer - Garrett Oliver
- Let Me Tell You About Beer - Melissa Cole
- Larousse da Cerveja - Ronaldo Morado
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