quinta-feira, 6 de junho de 2013

Levedo

O levedo (Saccharomyces, fungo do açúcar) é um fungo microscópico unicelular, responsável pela fermentação da cerveja, entre outros alimentos (o pão, o vinho, o queijo e vários tipos de conservas e molhos).
 Durante o processo de fermentação, o levedo consome açúcares fermentáveis, como a maltose, produzindo, em contrapartida, álcool e gás carbônico, além de um vasto espectro de aromas que intuitivamente associamos à cerveja. A célula de levedo tem forma redonda ou oval, e se reproduz através de brotamento multilateral, sendo capaz de sobreviver em altíssimas concentrações de álcool, tanto na presença quanto na ausência de oxigênio. Na presença de oxigênio, as células tendem a se multiplicar e a crescer, ao invés de produzirem álcool. Contudo, isso depende do nível de açúcar no líquido estar abaixo de 0,2 g/L; caso se encontre acima disso, haverá a formação de álcool independentemente da presença  de oxigênio. Durante as primeiras horas de fermentação, estando em uma situação aeróbica, o levedo irá se multiplicar e produzir etanol simultaneamente. Assim que o oxigênio se esgotar, os microorganismos passarão a apenas produzir etanol, mas agora em velocidade reduzida. Além desse álcool, outros produtos são oriundos do processo de fermentação, por parte do levedo, como ésteres, compostos derivados de enxofre, entre outros. A presença desses produtos e sua consequente influência na cerveja podem ser controladas, alterando-se fatores como a aeração, pressão, etc.
“Sem ele (levedo) o vinho seria apenas um suco de uva e a cerveja uma água de cevada.” (Ronaldo Morado)


Études sur La Bière, de Louis Pasteur
Até o final do século XIX o processo de fermentação era atribuído a processos mágicos, com pitadas divinas dependendo da religião de cada povo. Homens como Leeuwenhoek, Louis Pasteur, Lavoisier e Gay Lussac, foram determinantes no processo de conhecimento da real ação do levedo. A partir do conhecimento adquirido, e do desenvolvimento de técnicas de armazenamento e de reprodução e combinação de colônias de levedo, foi possível um desenvolvimento igualmente rápido da cerveja, proporcionando a criação de diversos segmentos e tipos, a introdução de novos aromas e processos de produção.

Embora existam aproximadamente 150 tipos de levedo, a maioria deles não é apropriada para a fabricação de cerveja. Tradicionalmente a identificação da espécie de levedo levou em conta sua forma de reprodução e morfologia; atualmente esses métodos foram substituídos por testes de DNA. Essa tecnologia proporcionou, além de uma identificação mais precisa, uma detecção apurada de levedo selvagem, contaminante comum mas extremamente indesejado na maior parte das cervejarias. Via de regra, na produção de cerveja são usadas as Saccharomyces cerevisiae, e variantes, dentre elas, carlsbergensis ou uvarum e Saccharomyces pastorianus.  A escolha do levedo a ser utilizado decide basicamente se o produto final será uma ale, uma lager, ou uma wild ale, por exemplo. Falando em grande escala, existem basicamente dois tipos de levedo utilizados na indústria cervejeira:

Leveduras de alta fermentação – utilizadas em processos fermentivos entre 15 e 25°C. Produzem aromas típicos frutados e em alguns casos condimentados. Não fermentam bem a temperaturas mais baixas.
No caso da alta fermentação, a espécie de levedo mais apropriada é exatamente a S. cerevisiae, conhecida e utilizada para fermentação há pelo menos 3.000 anos, ainda que, como mencionado, o processo de fermentação como um todo fosse um mistério para os povos da época.

Processo de  fermentação
Leveduras de baixa fermentação – ativas a temperaturas mais baixas, utilizadas na maioria dos casos entre 9 e 15°C, resultando em estilos mais neutros do ponto de vista de aromas de fermentação, como as Pilsen. Nesse caso é utilizado o Saccharomyces pastorianus, um híbrido resultante do Saccharomyces cerevisiae e Saccharmoyces bayanus (esta última utilizada, em alguns casos, na fermentação de vinhos); sua ação é mais lenta que a ação no caso do levedo de alta fermentação. Esse variante recebe seu nome em homenagem a Louis Pasteur que, além de inúmeras descobertas, escreveu a célebre obra Études sur la Bière, que identifica vários erros comuns no processo de fermentação e explica como solucioná-los. Quanto a esses procedimentos, há também um consenso entre os historiadores de que a tradição de se retirar o levedo após o processo de fermentação, no caso da baixa fermentação, foi desenvolvido no início do século XIV pelos cervejeiros da cervejaria de Weihenstephan, Alemanha. Entretanto, a verdadeira “revolução” do levedo de baixa fermentação ocorreu exatamente na região da Bavária (Sul da Alemanha) há aproximadamente 200 anos. Desde então esse tipo de levedo literalmente se alastrou ao redor do mundo, tornando-se, de longe, a espécie mais utilizada na produção de cerveja.

Devido ao fato de ser uma espécie bem “mais nova” do que o levedo de alta fermentação, ainda não houve um desenvolvimento e um surgimento de novas espécies tão amplo; resultado disso é que os aromas e o sabor provenientes de levedo de baixa fermentação tendem a apresentar semelhanças independentemente da espécie em questão.
"Em inglês a expressão bottom fermentation é usada para indicar o processo das leveduras de baixa fermentação, pois sua deposição ocorre no fundo da cuba. A expressão high fermentation, usada no caso das leveduras de alta fermentação, refere-se tanto ao fato de requererem uma temperatura maior do que a necessária para as Lager e agirem mais rápido que elas, quanto ao de permanecerem na superfície ao final da fermentação, embora esta última característica não esteja presente em todas as leveduras de alta fermentação.” (Morado)

Dessa divisão entre levedo de alta e de baixa fermentação, resultam subdivisões de estilos de cerveja:


Ambar Ale
Cervejas de fermentação de superfície (Top fermented) – cuja fermentação ocorre em temperaturas entre15 e 25°C, durante 3 a 5 dias. As leveduras sobrenadam na cerveja, na maioria dos casos; contudo, com a introdução de reservatórios de fundo cônico, essa característica tem sido manipulada, puxando-se o levedo para a ponta do cone após a fermentação, possibilitando o seu reuso. O teor alcoólico varia de 3 a 5,5% em volume, no caso da Bitter Ale e até 6 a 10% em volume para as Trappistas. Contudo, esse tipo de levedo não consome todos os tipos de açúcares presentes, de modo que é natural que as cervejas por ele fermentadas possuam, de forma geral, notas mais doces e aromáticas e um corpo mais denso do que aquele presente em uma tradicional Lager. Durante o processo de fermentação, o levedo se encontra no topo do reservatório, formando uma grande massa de espuma sobrenadante; o que não significa dizer que a fermentação está ocorrendo apenas na superfície.
Exemplos: Porter, Stout, Cervejas de trigo, Trappistas, Barley Wines, Brown Ale, Pale Ale, Ambar Ale, Blonde.

Cervejas de fermentação de fundo (Bottom fermented) – cuja fermentação acontece em temperaturas entre 9 e 15°C, e leva aproximadamente 6 dias. O teor alcoólico dessas bebidas varia entre 4 a 5%, podendo alcançar até 10% no caso de Bocks e Doppelbocks. A baixa fermentação é utilizada, sobretudo, em estilos menos frutados ou condimentados (com menos aromas de fermentação), como as Lagers, de coloração dourada, corpo mais leve e boa formação de espuma. Isso porque a baixa temperatura evita que o micro-organismo devore de forma muito rápida todo o açúcar presente, inibindo notas frutadas (naturais no caso da alta fermentação). Após a fermentação, que toma de 5 a 14 dias, as células de levedo se depositam no fundo do tanque.


Cervejas de fermentação espontâneaa fermentação acontece de forma espontânea a partir de leveduras e bactérias presentes no ambiente, mais precisamente, a Brettanomyces genus, que conta com 3 subespécies: claussenii (em referência ao cientista dinamarquês Claussen), bruxellensis (em referência à capital da Bélgica, conhecida, entre outras, pela produção de lambics) e lambicus (cujo nome já diz tudo). As leveduras normalmente se concentram na superfície, como no caso das Ale. O processo pode demorar alguns meses ou até 2 anos, sendo conduzido em temperatura ambiente. Além de malte de cevada e/ou de trigo, são acrescidas muitas vezes frutas como cerejas, framboesa, pêssego ou uvas, conferindo um vasto espectro em questão de paladar, caso das Fruit Lambic. Seu teor alcoólico varia de 4 a 6% em volume, e sua acidez é pronunciada. Geralmente, é adicionada ao mosto (antes da fermentação) uma grande quantidade de lúpulo conservado por um longo período, de modo que, apesar de ter perdido seu potencial para tornar a cerveja amarga, ajuda a conservá-la por mais tempo (tendo em vista o longo tempo de fermentação). Citando Melissa Cole, “Esse tipo de cerveja pode te dar uma boa ideia de qual era o gosto da cerveja há muitos séculos, antes de ser produzida em massa em cervejarias, polido pela ciência e da cerveja ser conservada em reluzentes barris de cobre” (tradução livre).

Cervejas típicas fermentadas a partir do uso de Brettanomyces incluem as Sour Ales e claro, as Belgian Lambics.

Como mencionado, contudo, na maioria dos casos, levedo selvagem é indesejável no processo de fermentação, por alterar o tempo e o processo em si, e por gerar sabor e aromas outros que aqueles buscados. O levedo selvagem pode ser tanto do tipo Saccharomyces quanto de não-Saccharomyces. No caso do levedo selvagem do tipo Saccharmyces, a espécie S. diastaticus é particularmente indesejada, uma vez que ela é capaz de fermentar o açúcar (dextrina) deixado para trás pelo levedo normal, e que é fundamental para a formação do corpo da cerveja. Entre os tipos prejudiciais de levedo selvagem e que não pertencem à família Saccharomyces encontramos Pichia, Rhodotorula, Kluyveromyces e Candida, que tornam a cerveja turva e criam um filme em sua superfície.
Produção de cerveja na idade média
Atualmente são guardadas amostras de culturas puras de levedo em diversos institutos de pesquisa ao redor do mundo (Weihenstephan e VLB na Alemanha, Jörgensen na Dinamarca, Nation Collection of Yeast Cultures (Inglaterra), entre outros). Antes de serem guardadas em institutos, cervejarias que tinham problemas com suas culturas de levedo por vezes recebiam amostras de culturas de cervejarias vizinhas, em forma de favor, o que fez com que algumas cervejarias se tornassem famosas por fornecerem levedo, e por conservarem seu levedo em sua forma original por décadas, até mesmo séculos. Ainda hoje há cervejarias que utilizam “descendentes” de suas primeiras células de levedo, nunca tendo adicionado ou alterado de qualquer forma a sua cultura ao longo de séculos.

Wir hopfen alles Gute!
Wilhelm Stein

Referências:
  • David Quain – Brewing Yeast and Fermentation (Oxford, 2001)
  • J. Stewart Harrison – The Yeasts (Londres, 1993)
  • White, Chris e Jamil Zainasheff – The practical guide to yeast fermentation (Boulder, 2010)
  • Garrett Oliver – The Oxford Companion to Beer
  • Melissa Cole – Let me tell you about Beer
  • Ronaldo Morado – Larousse da Cerveja

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